Receita identifica R$ 19,1 bilhões em créditos tributários usados indevidamente em 2024
Por: Jéssica Sant'Ana e Beatriz Olivon
Fonte: Valor Econômico
A Receita Federal identificou R$ 19,1 bilhões em créditos presumidos de
tributos que foram transmitidos, de janeiro a dezembro de 2024, por
contribuintes com atividade econômica incompatível com os tipos de
produtos que dariam direito de fazer a compensação tributária com esse tipo
de crédito. O caso mais emblemático é relativo à indústria farmacêutica e de
importadores de medicamentos: 97% do crédito relacionado a essas atividades
foi solicitado por empresas que não se enquadram nas categorias previstas pela
legislação.
Os dados constam em nota técnica obtida pelo Valor via Lei de Acesso à
Informação (LAI). No documento, o subsecretário de Arrecadação, Cadastros
e Atendimento da Receita, Gustavo Manrique, cita que, somente no ano
passado, o Fisco rejeitou R$ 51 bilhões de pedidos de compensação por serem
indevidos, de um total de R$ 67,2 bilhões analisados. Ou seja, dos pedidos de
compensação que passaram pela auditoria, 76% foram negados.
Além de créditos que não guardam relação com a atividade econômica, há ainda
os pedidos baseados em documento de arrecadação inexistente, que somaram
R$ 6,4 bilhões.
Segundo o Fisco, os pedidos de compensação indevida acontecem por alguns
motivos, entre eles: interpretação ampliada das bases legais que geram o crédito
tributário; apresentação de créditos bilionários inexistentes; e atuação de
consultorias fraudulentas, voltadas à fabricação artificial de créditos. A
consequência é que o governo arrecada menos, já que os créditos são um
benefício usado pelas empresas para abater impostos e contribuições devidos.
No mês passado, o governo sancionou a Lei nº 15.265, que fecha a brecha para
essa compensação indevida. De acordo com a legislação, não será compensado
o crédito tributário presumido de PIS/Cofins que não guarde relação com a
atividade econômica da empresa, exceto nos casos de transformação,
incorporação ou fusão, em que podem ser consideradas as atividades do
negócio originário. Também fica proibida a compensação de crédito decorrente
de documento de arrecadação inexistente.
Essas duas medidas já estavam em vigor desde meados do ano, em razão da
Medida Provisória (MP) nº 1.303, que criou alternativa ao Imposto sobre
Operações Financeiras (IOF). Contudo, como a MP não foi apreciada pelo
Congresso Nacional, as regras mais rígidas para a compensação tributária foram
incorporadas num projeto de lei que tratava do Regime Especial de Atualização
e Regularização Patrimonial (Rearp). A Lei nº 15.265 é fruto desse projeto.
A expectativa, segundo a nota técnica, é que até o fim deste ano a arrecadação
aumente em R$ 1,1 bilhão com as regras mais rígidas para compensação, além
do que já foi levantado no período em que a MP 1.303 ficou vigente. Para o
próximo ano, o valor anualizado esperado é de R$ 10 bilhões.
Ao todo, a Receita Federal analisou R$ 27,2 bilhões em créditos presumidos
transmitidos ao longo do ano de 2024 pelas empresas. Desse total, 70%, ou R$
19,1 bilhões, se mostraram incompatíveis com as atividades econômicas das
empresas que solicitaram o direito. Ou seja, são benefícios fiscais destinados a
determinados setores, mas que as empresas que pedem a compensação do
crédito não exercem aquela atividade. Apenas 30% do analisado, ou R$ 8
bilhões, guardava relação com o segmento econômico da empresa.
A maior incompatibilidade em valores absolutos foi registrada em relação a
benefícios fiscais que deveriam ser usados pelo setor farmacêutico. Segundo os
dados do Fisco, os pedidos de compensação tributária indevidos relacionados
a esse setor somaram quase R$ 9 bilhões em 2024, o equivalente a 97% do total
de créditos transmitidos na área no ano.
Depois, aparecem créditos relacionados à indústria de leite, em que R$ 5,3
bilhões dos pedidos de compensação foram indevidos, o equivalente a 81% do
total de créditos na área transmitidos; venda de soja e biodiesel, com R$ 2,1
bilhões (42%); e nafta, com R$ 1,2 bilhão, 97% do total.
Com as novas regras trazidas pela Lei nº 15.265, o Fisco entende que delimita
com maior precisão as hipóteses de “compensação não declarada”, reforça o
combate a fraudes, assegura uma arrecadação tributária “correta e justa” e
oferece maior clareza às hipóteses de compensação aos contribuintes,
reduzindo espaço para interpretações indevidas.
Para a advogada Priscila Faricelli, sócia da área de tributário do Demarest, a
Receita Federal está “passando um pente fino nas compensações que parecem
fraudes e se repetem”. Segundo ela, existem consultorias que criam um crédito
fictício, que funciona especialmente em negócios que são acumuladores de
créditos, como o setor farmacêutico.
“A consultoria fica um ano fazendo compensação para o cliente, pega um
percentual do ganho e desaparece”, diz Priscila. “Quando o cliente começa a
receber a conta, nem localizar mais o profissional ele consegue”, acrescenta.
Mas, segundo a advogada, em geral, as fraudes podem ser percebidas pelas
empresas.
Outra modalidade é a fraude com base em decisões judiciais coletivas, alvo
recente da Receita, que passou a exigir mais requisitos para as compensações
nesses casos. “Conforme o Fisco vai percebendo que certas condutas se dão de
forma consistente e volumosa, ele mapeia e tenta resolver o problema”, afirma
a advogada. O primeiro passo, ainda este ano, foi exigir a habilitação dos
créditos, agora o alvo são mandados de segurança coletivos.
Priscila aponta um boom nas compensações a partir do ano de 2019, reflexo do
julgamento de 2018 em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu o
conceito de insumo para creditamento de PIS e Cofins (REsp 1.221.170). Ao
mesmo tempo que aumenta o uso de créditos válidos, os fraudadores também
atuam, segundo a tributarista. “É inevitável”, aponta. Para ela, o sistema da
Receita deveria bloquear a tentativa do contribuinte usar crédito inexistente.